Turma do Xaxado

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Antonio Cedraz

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

"Quadrinhos não são subliteratura!"

por Caio Ferraro


"QUADRINHOS NÃO SÃO SUBLITERATURA!"

Quatro foram os momentos em que repeti mentalmente esta frase na semana anterior. Por três vezes na USP e por uma vez na sala de leitura da escola em que leciono. Escrevo esta carta à senhora professora, não por desprezar as demais educadoras, mas por acreditar que não fui suficientemente claro em minha resposta em sala de aula. Importante ressaltar que essa carta não tem um caráter revanchista, mas surge da necessidade de esclarecer esse preconceito velado, camuflado em falas inocentes e prateleiras rasteiras de salas de leitura.




O primeiro momento em que a dita frase me veio à mente foi durante a aula de Didática. Ao apresentar o livro "Quadrinhos na Educação" (RAMOS, Paulo; VERGUEIRO, Waldomiro) como possível objeto de estudo fui questionado se havia um aspecto pedagógico na obra ou simplesmente "um ensino de como desenhar". Este questionamento representa antes um desconhecimento das práticas pedagógicas relacionadas às histórias em quadrinhos, do que uma aversão à sua utilização como ferramenta educacional. Os colegas anteriores apresentaram saraus e música, mas não foi preciso elucidar à docente de quais maneiras a poesia poderia ser trabalhada ou quais aspectos cognitivos a música pode desenvolver como instrumento de ensino aprendizagem. A todo momento os que se valem das histórias em quadrinhos na educação são compelidos a se defender, justificando sua aplicação e reafirmando sua eficácia. Essa postura defensiva é reflexo do longo caminho a ser percorrido até o reconhecimento das histórias em quadrinhos como a arte que é, com suas potencialidades e peculiaridades próprias.



Aceitar os quadrinhos como 9ª arte nos leva à questão seguinte. Como tentativa de encerrar a discussão acerca do que é ou não subliteratura uma colega afirmou que "há histórias em quadrinhos excelentes baseadas em clássicos da literatura como "D. Quixote" e "Tristão e Isolda"", ao que alguém respondeu que seria possível, inclusive, que a partir dessa leitura a criança poderia vir a ler a obra original. O diálogo reproduzido demonstra o lugar comum de que os quadrinhos são um meio pelo qual a criança pode evoluir à literatura de real valor. Apontamos então dois aspectos comumente associados às histórias em quadrinhos: cultura infantil e inferior à literatura clássica.
 

A citar: "Tristão e Isolda", obra distribuída nas escolas estaduais paulistas em 2011, não se encaixa em nenhum padrão do que definimos como história em quadrinhos, pois é uma adaptação com esparsas gravuras individuais. Will Eisner, um dos maiores quadrinistas de todos os tempos, definiu a história em quadrinhos: 

"A configuração geral da revista em quadrinhos apresenta uma sobreposição de palavra e imagem, e, assim, é preciso que o leitor exerça as suas habilidades interpretativas visuais e verbais. As regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da literatura (por exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente. A leitura da revista de quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço intelectual." (EISNER, 1989)

Assistir a uma adaptação cinematográfica de determinada obra literária não tem o intuito de estimular a leitura do original. Da mesma maneira, acreditar que as adaptações em quadrinhos devam servir de facilitador da leitura de obras clássicas é um equívoco. Esta perspectiva reducionista gerou um mercado milionário relacionado ao PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), uma vez que os editais sugerem uma inclinação à seleção de adaptações da literatura clássica.  As editoras passaram a encomendá-las, indicando volumes do cânone nacional e internacional. Com a venda garantida por meio desta seleção as editoras estabeleciam uma tiragem muito maior do que a habitual comercialização em bancas e livrarias. Como aponta o professor Paulo Ramos em seu blog:

"Do ponto de vista comercial, as editoras já perceberam que há aí um bom negócio. De poucos pares de adaptações existentes em 2005 o mercado saltou para cerca de quatro dezenas ao ano. O principal dado a ser observado é que tais publicações não têm apenas como leitor imediato o interessado em literatura ou o apreciador de histórias em quadrinhos. As listas governamentais de fomento à leitura parecem ser o público-alvo majoritário." (http://blogdosquadrinhos.blog.uol.com.br/arch2013-09-01_2013-09-30.html#2013_09-10_18_40_04-135059040-28)


Podemos aqui comparar as duas adaptações de "O Guarani", de José de Alencar, publicadas em 2009 e a versão de Marcatti para "A Relíquia", de Eça de Queirós, publicada em 2007. Enquanto as versões da obra do romancista brasileiro apresentam um caráter estritamente voltado à escola, como fica óbvio com o suplemento de leitura que costuma acompanhar os livros paradidáticos, a releitura de Marcatti sobre o clássico português mantém o traço underground do autor. As duas versões de "O Guarani" foram selecionadas na lista do PNBE 2011, inexplicável.


   


Muito pode ser dito sobre essas três histórias em quadrinhos, mas o tempo é pouco e me comprometo a fazê-lo em oportunidade próxima. Continuemos...

Na sequência de nossa aula você voltou a insistir que eu lhe indicasse histórias em quadrinhos de qualidade para leitura daqueles que não tem um conhecimento prévio desse tipo de publicação. Eu me neguei professora, pelo mesmo motivo que você apontou para a dificuldade dos professores de sala de leitura em utilizar o acervo: é necessário que se faça uma leitura prévia para saber o que lhe atrai e identificar o perfil dos leitores de sua unidade educacional. Não me fiz entender, mas cada história em quadrinhos que utilizo para exemplificar minhas ideias nesta carta servem como indicação do que considero como digno da leitura de uma Professora Doutora da Universidade de São Paulo. Elencarei todas ao final da carta. 


Durante os últimos meses tentamos dissuadir uma colega, professora da sala de leitura da escola em que leciono, a disponibilizar um espaço para a criação de uma Gibiteca. O principal ponto de conflito é a existência de tal espaço: um carrinho de três prateleiras, onde encontramos grande parte das histórias em quadrinhos da sala de leitura (há algumas guardadas em armário fechado e mangás perdidos em outra seção). A insistência em afirmar que este não é o local apropriado para todo tipo de histórias em quadrinhos acabou por ser confundido com o medo de que as mesmas estivessem ao alcance das crianças, o que não é o caso, mas é importante ressaltar que tal como a literatura clássica, os quadrinhos também devem ser divididos e classificados por faixas etárias, o que somente alguém que conhece o material pode fazer. É preciso ler. Obras como D. João Carioca, Na Prisão e O Nome do Jogo, misturadas à Turma da Mônica e Sítio do Picapau Amarelo, faz tanto sentido quanto posicionar Jorge Amado na prateleira de contos infantis. O ponto em questão não é menosprezar quadrinhos voltados para o público infantil, muito pelo contrário, mas entender a arquitetura de uma Gibiteca, mesmo que reduzida a uma única estante. 

Gostaria de falar muito mais sobre uma das minhas grandes paixões, mas como você bem sabe o tempo do educador é curto e como disse o amigo poeta Jackson: 

"Mas, pouco tempo, muito mote 

E é de se encerrar

Que já te prendemos em palavras por demais"


Lista de Quadrinhos indicados:
O Nome do Jogo - Will Eisner (obra selecionada no PNBE)
Nova Iorque - a vida na grande cidade - Will Eisner (obra distribuída pela FDE)
Fagin - O judeu - Will Eisner (obra selecionada no PNBE)
Na Prisão - Kasuichi Hanawa (obra selecionada no PNBE)
D. João Carioca - Spacca (obra selecionada no PNBE)
Santô - Spacca (obra selecionada no PNBE)
Toda Mafalda - Quino (obra selecionada no PNBE)
A Relíquia - Marcatti
Laços - Turma da Mônica - Vitor e Lu Cafaggi
Gen - pés descalços - Keiji Nakazawa
Os Leões de Bagdá - Brian K. Vaughan e Niko Henrichon
Uma criança na Palestina - Naji al-Ali
Daytriper - Fábio Moon e Gabriel Bá


2 comentários:

Horrana disse...

Só pra reforçar que morro de orgulho de ter sido sua aluna(de ainda ser). Excelente carta argumentativa. E valeu inclusive pra mim, como estudante. É difícil, muitas vezes, enxergar o valor que os HQ's podem agregar tanto para vocês, professores, lecionarem, quanto para mim, sendo estudante. Esse é um bom pontapé para começar a ver esses conceitos.

Beijo

Sinos disse...

cada vez mais lucido! Parabéns ;)

Os Queridinhos!